Inácio, o buscador de Deus: A ferida que transformou a Igreja e o mundo tem de continuar aberta

Em Pamplona, a 20 de maio, o P. Arturo Sosa, superior-geral da Companhia de Jesus, deu início ao Ano Inaciano. Em Pamplona porque foi a cidade de Espanha onde decorreu a batalha durante a qual Inácio de Loyola foi gravemente ferido numa perna, ao ponto de arriscar a morte. A 20 de maio porque o ferimento aconteceu precisamente naquele dia de há 500 anos.

Não é um evento particular da biografia de Inácio o que os Jesuítas querem celebrar. Mas aquilo que dele brotou. Porque, em certo sentido, pode bem dizer-se que «tudo começou dali»: a transformação da parte de Deus de Inácio de homem de corte, portanto totalmente dentro de todas as lógicas de sucesso e de glória mundana, num peregrino – como ele gostará de se definir – da vontade de Deus.

Peregrino, geograficamente, através da Europa (e a Palestina) até Roma; espiritualmente, quer através sobretudo da redação do texto dos “Exercícios espirituais”, “manual” para incontáveis gerações futuras da procura da vontade de Deus, que ele começou a conceber precisamente a partir da sua experiência pessoal durante a convalescência após a ferida de Pamplona, analisando aquilo que se movia nele diante desta ou daquela hipótese de como gastar plenamente a sua vida, quer através da fundação da Companhia e, consequentemente, o que ela significou para a Igreja.

Num tempo em que parece que, pelo menos em certas partes do mundo, a começar pela nossa, a pandemia está a abrandar, é fundamental que não nos deixemos tomar por um desejo de “regresso à normalidade” entendido como regresso à maneira de viver de antes. As divisões e a injustiça atravessavam-na de maneira inaceitável

Por isso, o Ano Inaciano (20 de maio de 2021 – 31 de julho de 2022, aniversário da morte de Inácio) é a celebração daquilo que o Senhor fez nele e do que daí se seguiu. Podemos dizer: uma espiritualidade. Para a Companhia de Jesus e para todos aqueles que a reconheceram verdadeira para si. Ou seja, um modo de viver, de proceder, um caminho para rumar a Deus, plenitude e fim, que disso se seja ou não consciente, de cada existência humana.

O primeiro elemento fundamental desta espiritualidade (como claramente de toda a espiritualidade cristã) é a relação pessoal com Jesus Cristo, contemplado nos “Exercícios espirituais” ao longo da vida, para o conhecer, amar e segui-lo cada vez mais. Um segundo elemento: «Procurar e encontrar Deus em todas as coisas». Mesmo em todos: inclusive uma bala de canhão que te estilhaça uma perna, te conduz à beira da morte e destrói todos os teus projetos.

É destes elementos que emerge o lema escolhido para iluminar o Ano Inaciano: «Ver novas todas as coisas em Cristo» (que se refere a quanto Inácio narra de uma sua extraordinária experiência mística em Manresa: «Não teve uma visão, mas conhece e compreende muitos princípios da vida interior e muitas coisas divinas e humanas com tanta luz, que tudo lhe aparecia como novo… parecia-lhe ser outro homem». Um terceiro elemento que caracteriza a espiritualidade de Inácio, amadurecido nele desde a convalescência após Pamplona, é o discernimento, instrumento principal de exercício de liberdade e, portanto, de crescimento na liberdade.

Estes três elementos estão na base da vida que a espiritualidade inaciana propõe, adaptadíssima – julgo – à pessoa de hoje: uma relação pessoalíssima com Jesus reconhecido como verdade do ser humano, e por isso caminho eminente para se tornar humano; um olhar “simpático” com toda a realidade humana («nada daquilo que é humano me é estranho»), identificando-lhe o positivo e procurando fazê-lo crescer; um estatuto de liberdade que se alimenta de discernimento e abre ao discernimento em cada circunstância, na busca do maior amor possível aqui e agora, para uma vida que seja, em humildade, «em tudo amar e servir».

A ferida de Pamplona transformou Inácio, modificando radicalmente os valores segundo os quais vivia, as aspirações que o moviam. O mesmo deve acontecer para nós

O remontar às nossas origens históricas e espirituais através de um Ano Inaciano quer portanto ser – reitero – não um facto celebrativo de acontecimentos passados, mas, antes, uma maneira para fundar e realizar mais eficazmente toda a nossa atividade apostólica dos próximos anos. Ela exprime-se, em particular, nas quatro «preferências apostólicas universais» que o papa Francisco nos confiou para a década 2019-2029, que são: indicar o caminho para Deus, em particular através dos “Exercícios espirituais” e o discernimento; caminhar juntamente com os pobres e os excluídos do mundo, numa missão de reconciliação e justiça; acompanhar os jovens num futuro de esperança; colaborar no cuidado da casa comum.

Não ilustro – seria excessivamente longo – estes pontos. Limito-me a sublinhar como este olhar, que quer ser de alguma forma universal sobre o mundo de hoje, quer guiar-nos e impelir-nos, humildemente, ao compromisso com a força do Espírito pela transformação do mundo, a par da aceitação da transformação, por parte do Espírito Santo, de nós mesmos, como aconteceu para Inácio. O nosso padre geral insiste repetidamente nisto. Em particular num tempo em que parece que, pelo menos em certas partes do mundo, a começar pela nossa, a pandemia está a abrandar, é fundamental que não nos deixemos tomar por um desejo de “regresso à normalidade” entendido como regresso à maneira de viver de antes. As divisões e a injustiça atravessavam-na de maneira inaceitável.

A ferida de Pamplona transformou Inácio, modificando radicalmente os valores segundo os quais vivia, as aspirações que o moviam. O mesmo deve acontecer para nós. Transformações pessoais e institucionais em vista de um mundo mais reconciliado e mais justo no amor que também o papa Francisco continuamente nos aponta como única meta sensata do nosso viver.


Publicado originalmente em https://snpcultura.org/inacio_o_buscador_de_Deus.html.
Gian Giacomo Rotelli
In L’Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: “Santo Inácio de Loyola”
Publicado em 27.05.2021

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